Capítulo 3
Topologia de Espaços Métricos: releitura

Neste capítulo, vamos fazer uma releitura do que estudamos no Capítulo 2. Desta vez, vamos tentar eliminar o máximo possível os argumentos do tipo “epsilon e delta”. O objetivo é apresentar a topologia dos espaços métricos utilizando a métrica o mínimo possível, de modo a tornar a apresentação dos conceitos mais parecida com seus correspondentes quando trabalhamos com a chamada topologia geral (Definição 4.1).

O conceito mais importante e mais enfatizado nos cursos de topologia é o de conjunto aberto (Definição 3.10). No entanto, o conceito de vizinhança (Definição 3.1) é muito mais fundamental e mais natural, principalmente quando se faz o paralelo entre o ponto de vista da topologia geral e a topologia dos espaços métricos. O conceito de vizinhança é mais próximo e generaliza muito melhor o que se faz quando se utiliza argumentos com bolas, ou argumentos do tipo “epsilon e delta”, muito comuns quando tratamos de espaços métricos. Veja, por exemplo, os exercícios da seção 2.3.

3.1 Vizinhanças

Quando falamos de convergência e continuidade nos capítulos anteriores, estávamos de posse de uma métrica. A métrica nos dava a noção de distância que nos permitia falar de “proximidade”. Quando dizemos que xn converge para x, não estamos de fato interessado nos pontos que estão “longe” de x. Estamos interessados apenas nos que estão “próximos”. De fato, poderíamos nos restringir apenas a bolas “pequeninas”. Poderíamos nos restringir a bolas de raio menor que 1. Ou então, a bolas de raio 1 2n. Ou, de modo um pouco mais geral, poderíamos nos restringir a bolas de raio 𝜀n > 0, onde 𝜀n é uma sequência qualquer tal que 𝜀n 0.

Quando xn converge para x, é porque se V é um conjunto que contém x e é de certa forma um conjunto suficientemente grande, conterá toda a sequência xn, exceto para uma quantidade finita de índices n. Esse suficientemente grande, no caso de espaços métricos, significa que existe uma bola B centrada em x tal que B V . A esses conjuntos suficientemente grandes, chamamos de vizinhanças de x. (veja a Proposição 2.9)

Definição 3.1.

Seja X um espaço métrico e x X. Todo conjunto V X que contém uma bola centrada em x é chamado de vizinhança de x. Denotamos por 𝒱x o conjunto de todas as vizinhanças do ponto x.


PIC


Figura 3.1: O conjunto V é uma vizinhança x pois é “grande” o suficiente para conter uma bola centrada em x.

É imediato que toda bola centrada em x é uma vizinhança de x. Mais do que isso, pela Proposição 1.4, uma bola é vizinhança de todos os seus pontos. Esta propriedade está formalizada na proposição seguinte.

Proposição 3.2.

Se B X é uma bola em um espaço métrico X. Então,

y B B 𝒱y.

Ou seja, uma bola é vizinhança de todos os seus pontos.

Demonstração. Veja a Proposição 1.4. Ou, para um argumento mais visual, compare as Figuras 1.3 e 3.1. □

A seguir, apresentamos algumas propriedades elementares das vizinhanças de um ponto.

Proposição 3.3.

Seja X um espaço métrico e xn,x X. Então

xn x

se, e somente se, para toda vizinhança de x, V 𝒱x, existir N tal que

n N xn V.

Demonstração. Tome uma bola B centrada em x tal que B V . Para esta bola existe N tal que

n N xn B.

Em particular,

n N xn V.

Proposição 3.4.

Seja X um espaço métrico e x X. Então valem as seguintes afirmações sobre a família 𝒱x de todas as vizinhanças de x:

  1. Se A 𝒱x e A B, então B 𝒱x.
  2. A interseção de duas vizinhanças de x também é uma vizinhança de x. Ou seja, se A,B 𝒱x, então A B 𝒱x.
  3. Se A 𝒱x então existe B A tal que x B e B é vizinhança de todos os seus pontos.

Demonstração. O item (1) é imediato.

O item (2) é imediato do fato que as bolas centradas em x são totalmente ordenadas. Ou seja, a que tiver o menor raio estará contida em ambos os conjuntos.

O item (3) é uma re-interpretação da Proposição 3.2. Basta tomar B como sendo uma bola centrada em x contida em A. □

Observação 3.5.

Das propriedades listadas na Proposição 3.4, o item (3) é o de interpretação mais difícil. Vamos voltar a discutí-lo no em vários momentos durante a exposição sobre topologia geral, e principalmente no Capítulo ??. Uma das implicações do item (3), é a seguinte. A explicação pode ser acompanhada na Figura 3.2. Seja V 𝒱x. Suponha que para cada n tenhamos uma sequência xmnV , indexada por m, que converge para xn. Então, não é possível que a sequência xn convirja para x. De fato, o item (3) da Proposição implica na existência de uma vizinhança aberta de x contida em V . Vamos chamar essa vizinhança de B, que na figura representamos sugestivamente como uma “bola”. Assim, se tivéssemos que xn converge para x, teríamos que para algum k , xk B. Como B também é vizinhança de xk (já que é vizinhança de todos os seus pontos), e como xmk xk, teríamos que para algum j , xjk B. Contrariando o fato de que xjkV .


PIC


Figura 3.2: Se xn x, então algum xmn pertence a V . Este fato se deve ao item (3) da Proposição 3.4.

3.1.1 Exercícios

3.1.1.

Em um espaço métrico X, dado um ponto qualquer x X, existe uma família enumerável de vizinhanças 𝒱x tal que para toda vizinhança V 𝒱x, existe B tal que x B V , e tal que se B1,B2 , teremos que B1 B2 ou B2 B1.

3.1.2. Seja 𝜀n > 0 uma sequência de números reais positivos tal que 𝜀n 0. Mostre que, em um espaço métrico X,

𝒱x = V X n ,B𝜀n(x) V .

3.1.3. Seja X um espaço métrico, x X, e a família de todas as bolas de X que contém x. Mostre que

𝒱x = V X B ,B V .

3.1.4. Mostre que em um espaço métrico, V 𝒱x se, e somente se, para toda sequência xn x, o conjunto

NV = n xnV

for finito.

3.1.5. Mostre, usando o exercício 3.1.1 e as proposições 3.2 e 3.3, que em um espaço métrico, se xn é uma sequência convergindo para x, e xnm é uma sequência (indexada por m) convergindo para xn, então existem sequências ilimitadas nk,mk , tais que xnkmk k x.

3.2 Continuidade em um Ponto

Usando vizinhanças para expressar continuidade a formulação fica muito simples. O trabalho todo já foi feito na Proposição 2.10.

Notação. Seja X um conjunto. Chamamos de partes de X, e denotamos por 𝒫X, a família formada por todos os subconjuntos de X. Assim, podemos olhar para f1 como sendo a aplicação

f1 :𝒫Y 𝒫X A f1(A) .

Se f : X Y e 𝒫Y , escrevemos f1() para indicar a família

f1() = f1(A) A .

Proposição 3.6.

Sejam X e Y espaços métricos. Então f : X Y é contínua em a X se, e somente se,

f1(𝒱f(a)) 𝒱a.

Demonstração. Tome V 𝒱f(a). Então existe uma bola B centrada em f(a), tal que B V . Pela Proposição 2.10, f1(B) 𝒱a. Como f1(B) f1(V ), temos que f1(V ) 𝒱a.

Por outro lado, se f1(𝒱f(a)) 𝒱a, teremos que em particular f1(B) 𝒱a para toda bola centrada em f(a). Ou seja, f1(B) contém uma bola centrada em a para toda bola B centrada em f(a). Novamente, pela Proposição 2.10, isso implica que f é contínua em a. □

Em se tratando de espaços métricos, tanto a definição 2.6, quanto qualquer uma de suas formulações equivalentes dadas pelas proposições 2.10 e 3.6, poderiam ser utilizadas como a definição de continuidade em um ponto. Poderíamos ter escolhido um caminho diferente e adotado uma definição de continuidade no estilo

Para todo 𝜀 > 0 existe δ > 0 tal que

d(x,a) < δ d(f(x),f(a)) < 𝜀.

Cada caracterização enfatiza um aspecto diferente do fenômeno de continuidade. É importante que não nos acomodemos a apenas uma delas, mas que escolhamos a mais adequada a cada situação.

3.3 Base de Vizinhanças

Quando definimos o que seriam as vizinhanças de um ponto x X de um espaço métrico, utilizamos as bolas centradas em x. Chamando de a família das bolas centradas em x, temos que

𝒱x.

Além do mais, todo conjunto V 𝒱x contém um conjunto B . Ou seja, a sub-família determina quais são as vizinhanças de x. Poderíamos ter nos restringido às bolas de raio 1 n para compor a família . As vizinhanças “geradas” por essa nova família seriam exatamente as mesmas.

Definição 3.7. Seja 𝒱x a família de todas as vizinhanças de x X, onde X é um espaço métrico. Então, dizemos que 𝒱x é uma base de vizinhanças de x quando

𝒱x = V X B , com B Y

Proposição 3.8.

Seja X um espaço métrico e x X. Seja também uma base de vizinhanças de x. Então, uma sequência xn converge para x se, e somente se, para todo B existir N = N(B) tal que

n N xn B.

Demonstração. Dado V 𝒱x, escolha B satisfazendo B V . Então, por hipótese, existe N = N(B) tal que

n N(V ) = N(B) xn B V.

Portanto, xn x. □

Proposição 3.9.

Sejam X e Y espaços métricos e f : X Y . Sejam a X e uma base de vizinhanças de f(a). Então, f é contínua em a se, e somente se,

f1() 𝒱a.

Demonstração. Pela Proposição 3.6, basta mostrar que

f1() 𝒱a f1(𝒱f(a)) 𝒱a.

Uma direção é óbvia, já que 𝒱f(a). Suponha então que V 𝒱f(a). Neste caso, existe B tal que B V . Assim, f1(V ) f1(B) 𝒱a. Portanto, f1(V ) 𝒱a. □

A aplicação mais imediata da proposição é a equivalência entre as seguintes afirmações, que são definições alternativas para a continuidade de f no ponto a:

Para todo 𝜀 > 0 existe δ > 0 tal que

d(x,a) < δ d(f(x),f(a)) < 𝜀.

Para todo n existe m tal que

d(x,a) < 1 m d(f(x),f(a)) < 1 n.

3.4 Conjuntos Abertos

Um conjunto aberto é um conjunto que é vizinhança de todos os seus pontos. A Proposição 1.4 mostra que em um espaço métrico, todas as bolas são abertas. Por isso, muitos autores usam a expressão bola aberta para se referirem ao que neste livro definimos como bola. Ainda vamos formalizar isso melhor, mas os conjuntos abertos caracterizam toda a topologia do espaço, haja visto que a família

𝒜x = V 𝒱x V  é aberto

é uma base de vizinhanças de x para todo x X. (veja o item (3) da Proposição 3.4)

Conhecendo todos os conjuntos abertos, sabemos quem são as sequências convergentes, quais funções são ou não contínuas e, conforme já mencionado, quais são as vizinhanças de um ponto.

Definição 3.10.

Seja X um espaço métrico. Dizemos que um conjunto A X é aberto quando satisfaz

x A A 𝒱x.

Definição 3.11.

Dado um espaço métrico (X,d), a topologia de X induzida por d, denotada por τd — ou, mais comumente, por um abuso de notação, denotada por τX é a família de todos os abertos de X. Isto é,

τX = A X A é aberto.

Proposição 3.12.

Seja X um espaço métrico e x X. Então a família

𝒜x = 𝒱x τX

é uma base de vizinhanças de x.

Demonstração. Basta notar que, chamando de a coleção de todas as bolas centradas em x,

𝒜x 𝒱x.

Como é uma base de vizinhanças de x, qualquer família “entre” e 𝒱x também é uma base de vizinhanças de x. (porquê?) □

Proposição 3.13.

Seja X um espaço métrico. Então, τX tem as seguintes propriedades:

  1. ,X τX.
  2. Se A,B τX, então A B τX.
  3. Se Aλ τX para uma família qualquer de índices λ Λ, então λΛAλ τX.

Demonstração. Para o item (1), é fácil ver que X é vizinhança de qualquer ponto x X. Para o conjunto vazio … note que todos os elementos do conjunto vazio satisfazem a propriedade que você quiser. Neste caso, a propriedade de terem como vizinhança. Em suma:

x 𝒱x.

E portanto, τX.

O item (2) é consequência do item (2) da Proposição 3.4. Ou seja, se x A B, como A e B são vizinhanças de x, então A B também é. Assim, A B é vizinhança de todos os seus pontos.

Do mesmo modo, o item (3) é consequência do item (1) da Proposição 3.4, pois

x λΛAλ λ Λ,x Aλ λΛAλ λΛAλ 𝒱x.

Ou seja, λΛAλ é vizinhança de todos os seus pontos e é portanto aberto. □

Proposição 3.14.

Seja X um espaço métrico e A X. Então, são equivalentes:

  1. O conjunto A é aberto.
  2. O conjunto A pode ser escrito como uma união de bolas.

Demonstração. Se A é aberto, então para cada ponto x A existe uma bola Bx centrada em x e contida em A. Desta forma, é evidente que

A = xABx.

Ou seja, A é uma união de bolas.

Por outro lado, sabemos que as bolas são conjunto abertos. Assim, qualquer conjunto que seja uma união de bolas é, pelo item (3) da Proposição 3.13, um conjunto aberto. □

3.4.1 Sequências e Convergência com Abertos

Dado um espaço métrico X. Podemos caracterizar o fenômeno de convergência em termos de sua topologia τX? De fato, para dizer se xn X converge ou não para um certo x X, de acordo com a Proposição 3.8, precisamos apenas conhecer uma base de vizinhanças de x qualquer. Sabemos que os abertos que contém x formam uma base de vizinhanças de x. Sendo assim, colcluímos que xn converge para x se, e somente se, para todo aberto A que contenha o ponto x existir N tal que

n N xn A.

3.5 Continuinuidade em Todo Ponto

Uma aplicação f : X Y entre espaços métricos X e Y é contínua quando é contínua em todo ponto do seu domínio. Se considerarmos f1 : 𝒫Y 𝒫X, a função f será contínua em x X quando f1 levar vizinhanças de f(x) em vizinhanças de x. Sendo assim, para f contínua, se A Y for um conjunto aberto (vizinhança de todos os seus pontos), então f1(A) será também vizinhança de todos os seus pontos. Ou seja, se f é contínua, então f1(τY ) τX. Vamos formalizar isso.

Proposição 3.15.

Sejam X e Y espaços métricos, e f : X Y uma função qualquer. As seguintes afirmações são equivalentes:

  1. A função f é contínua em todo ponto de X.
  2. A imagem inversa de um aberto é também um conjunto aberto. Ou seja, f1(τY ) τX.

Demonstração. _ (2) (1)

Seja A τY . Então, para todo x f1(A) temos que A é vizinhança de f(x), e pela Proposição 3.6, f1(A) é vizinhança de x. Ou seja, f1(A) é aberto.

_ (1) (2)

Sabemos pela Proposição 3.12 que para todo x X,

𝒜f(x) = 𝒱f(x) τY

é uma base de vizinhanças de f(x). Pelo item (2), temos que f1(𝒜f(x)) é aberto e obviamente contém x. Ou seja, f1(𝒜f(x)) 𝒱x. Pela Proposição 3.9, segue que f é contínua em x. □

O exemplo seguinte mostra que nem toda bijeção contínua tem inversa contínua.

Exemplo 3.16. Considere (,d) e (,dd) os espaços métricos dados pelos números reais com a métrica euclidiana (Exemplo 1.8) e a métrica discreta (Exemplo 1.9), respectivamente. Então, a aplicação identidade

id : (,dd) (,d)

é contínua, mas sua inversa não é. De fato, na topologia dada pela métrica discreta, todos os conjuntos são abertos. Ou seja, τdd = 𝒫.

E o que significa então dizer que f : X Y é bijetiva, contínua e sua inversa é contínua? O fato de ser uma bijeção implica que podemos identificar os pontos de X com os pontos de Y . O fato de ser contínua com inversa contínua significa que com essa identificação as estruturas topológicas τX e τY também são identificadas. Esse tipo de função f é chamada de homomorfismo. De modo geral, quando f : (X,dX) (Y,dY ) é uma função bijetiva qualquer, contínua ou não, com inversa também podendo ser ou não contínua, podemos transportar a métrica dY para X como feito no Exemplo 1.14:

d(a,b) = d Y (f(a),f(b)).

Desta forma, reduzimos o problema ao caso da aplicação identidade

id : (X,dX) (X,d),

pois a aplicação f será contínua (ou sua inversa será contínua) se, e somente se, a identidade o for. Em outras palavras, dizer que f é contínua é o mesmo que dizer que τd τdX. Dizer que a inversa de f é contínua, é o mesmo que dizer que τdX τd. Assim, f será um homeomorfismo quando τd = τdX.

Definição 3.17.

Se X e Y são espaços métricos, então uma função f : X Y é chamada de homomorfismo quando é bijetiva, contínua com inversa também contínua.